segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O bebê e os monstros


No ventre da mãe, a vida era uma riqueza infinita.
Sem falar nos sons e ruídos, para a criança todas as coisas estavam em constante movimento.
Se a mãe se erguer e andar,
se ela se virar ou inclinar-se
ou erquer-se na ponta dos pés.
Se ela debulhar legumes ou usar uma vassoura,
quantas ondas,
quantas sensações para a criança.
E se a mãe for descansar,
pegar um livro e sentar-se,
ou se deitar e adormecer,
sua respiração será sempre a mesma
e o marulho calmo -
a ressaca -
continua a embalar o bebê.



Depois,
passada a tempestade do nascimento,
eis a criança sozinha no berço,
ou melhor dizendo, numa dessas caminhas que são como gaiolas de recém-nascidos.
Nada mais se mexe!
Deserto.
E o silêncio.
Repentinamente, o mundo ao redor congelou-se,
coagulou-se,
numa imobilidade completa e terrível.
E,
enquanto lá fora faz-se completo vazio,
eis que
aqui dentro
alguma porção no ventre
agarra
torce
morde...
"Mamãe! Mamãe!"
Ah, que pavor!


No ventre?
Não
ali na escuridão!
Sim, no escuro
há um animal.
Sim, sim, um tigre, um leão...
"Eu o escuto! Eu o percebo!
Mamãe! Mamãe!"


Um animal? Na escuridão?
Prestes a saltar sobre a criança para devorá-la?
Um lobo, talvez?
Um lobo transformado em avó
e que espreita Chapeuzinho Vermelho
preparando-se para devorá-lo?

Um lobo?
Onde?
Na cama? Embaixo da cama?
Atrás do biombo?


Não!
está bem alí no ventre.
E se chama
fome.



A fome é um monstro?
A fome é sensação agradável. Não é verdade? Porque, de fato, com
muita satisfação, a vemos repetir-se várias vezes por dia.
Para nós,
uma agradável satisfação.
Porque nós sabemos muito bem que iremos comer.


E para a criança?
O pobre bebê pode movimentar-se?
Deslocar-se até a despensa?
Como se estivesse no restaurante, pode ele gritar:
"Garçom! Garçom!"?
Ele não se cansa de chamar. E, realmente, com toda a força.
Ele berra
para mostrar que lá dentro...


E... não acontece nada!
É preciso esperar.
E sofrer.
E se inquietar... com o desassossego.
Até que, finalmente, do deserto exterior em que o mundo se fez
vem alguma coisa
que por fim aquieta
o monstro desperto
lá dentro.


Fora, dentro...
Eis o mundo dividido em dois.
Dentro, a fome.
Fora, o leite.
Nasceu
o espaço.


Dentro, a fome
fora, o leite.
E, entre os dois,
a ausência,
a espera,
sofrimento indivizível.
E que se chama
tempo.



E é assim
que, tão-somente
do apetite,
nasceram
o espaço
e a existência*.



Se os bebês berram sempre que acordam não é porque a fome os atormente.
Eles não morrem de inanição.
Eles são aterrorizados pela novidade da sensação. Por essa "coisa qualquer interior" que assume imensas proporções, justamente porque o mundo exterior está morto.
É preciso alimentar os bebês.
Sem dúvida alguma.
Alimentar a sua pele tanto quanto o ventre.
E, além disso, nesse oceano de novidades, de desconhecido, é preciso devolver-lhe as sensações do passado. Só elas nesse momento podem oferecer-lhe um sentimento de paz, de segurança.
A pele e as costas não esqueceram.
As primeiras contrações no ventre materno aterrorizaram a criança.
Passada a surpresa, o pequeno ser começou a amar, a esperar por essa força que dele se apoderava, o esmagava e, por isso, o deixava assombrado e saciado.
E, semana após semana, o abraço ficava mais apaixonado, mais poderoso,
Para, finalmente, culminar no delírio,a embriaguez do parto, do trabalho.
Seria grave erro imaginar que o nascimento é necessariamente doloroso para o bebê.
A fatalidade da dor não existe.
Não mais que a fatalidade do parto.
Assim como dar à luz pode ser para a mulher liberada do medo uma experiência inebriante, com a qual nada se pode comparar,
para o bebê, o nascimento pode ser a mais extraodinária, a mais forte, a mais intensa das aventuras.
Seu grito é um protesto apaixonado por aquilo que um prazer tão intenso vem interromper de modo brusco.
No nascimento, é preciso segurar a criança, massageá-la.
Ao prolongar, dessa maneira, a poderosa sensação, lenta, ritmada, ao fazê-la alimentar-se de modo pausado, evitamos a ruptura brutal, causa de sofrimento e abstinência.
parece à criança, então, que a contração a acompanha até à margem para abandoná-la uma única vez, quando ela estiver bem assentada nessa liberdade nova e embriagante.



O que fizemos no nascimento temos de repetir todos os dias,
durante semanas e meses,
visto que, por muito tempo, sempre que acorda,
o bebê espanta-se com o fato de reencontrar o mundo do avesso:
as sensações fortes "dentro" do ventre, do estômago,
E "fora", coisa alguma!
é necessário restabelecer o equilíbrio.
E alimentar o "de fora" com o mesmo cuidado que o "de dentro".
Para ajudar os bebês a atravessar o deserto dos primeiros meses de vida.
a fim de que eles não sintam mais a angústia de estar isolados,
perdidos,
é preciso falar com suas costas,
é preciso falar com sua pele,
que têm tanta sede e fome
quanto o seu ventre.



Sim!
Os bebês têm necessidade de leite.
Mas muito mais de ser amados
e receber carinho.



Sentir...
Para o nariz, sentir é perceber o mundo mais adiantedo que a mão pode alcançar.
Ouvir é explorar mais longe ainda.
E ver, ah! ver... é acariciar com os olhos o universo milhares de quilômetros ao redor.
Cada sentido fala o mundo para nós. Seu mundo. E a harmonia se faz.
Cada sentido afasta um pouco mais além as fronteiras, tornando mais vasto, mais variado e mais rico o universo.
Apalpar, porém, é por aí que tudo, de modo muito simples, começou.
A língua, que sabe tantas coisas, é tocante.
Nos bebês a pele transcende a tudo.
É ela o primeiro sentido.
É ela que sabe.
Como elas e inflama com facilidade em todas as criancinhas!
Erupções, eritemas, pústulas...
Micróbios? Infecção?
Não, Não.
Mal-apanhadas.
Mal-acabadas. Mal cuidadas.
Mal conduzidas.
Mal-amadas.
Ah, sim, é preciso dar atenção a esta pele, nutri-la.
Com amor. Mas não com cremes.


Ser levados, embalados, acariciados, pegos, massageados constitui para os bebês, alimentos
tão indispénsáveis, senão mais, do que vitaminas, sais minerais e proteínas.
Se for privada disso tudo
e do cheiro, do calor
e da voz
que ela conhece bem,
mesmo cheia de leite, a criança vai-se deixar morrer de fome.





Por Frédérick Leboyer, em sua majestosa obra SHANTALA , prática milenar que desde então passou a ser difundida pelo ocidente.
Nos países que preservaram o profundo sentido das coisas, as mulheres ainda se recordam disso tudo. Aprenderam com suas mães e ensinarão às suas filhas essa arte profunda, siples e muito antiga que ajuda a criança a aceitar o mundo e a sorrir para a vida.

Oferenda à Semíramis e todas as mães da Terra.


(*) No original, lê-se la durée, conceito por Henri Bergson e que, segundo o nosso Aurélio, aplica-se à "sucessão das mudanças qualitativas dos nossos estados de consciência, que se fundem sem contornos precisos e sem possibilidades de medição".

Um comentário:

Mira disse...

Nossa Alê... que profundo né?
Estou com o Eric nos braços, depois de ler tudo isso, da vontade de não larga-lo nunca mais...
Beijos da irmã que te ama, e te entende...